A presença de um ou mais destes comportamentos, sobretudo utilizados para controlar as outras pessoas, pode significar que é vítima de violência física, psicológica ou sexual no seu relacionamento. A violência doméstica é crime. E a violência exercida entre pessoas do mesmo sexo no seu relacionamento também é violência doméstica.
O conceito de violência doméstica com que a APAV trabalha é amplo:
Qualquer conduta ou omissão de natureza criminal, reiterada e/ou intensa ou não, que inflija sofrimentos físicos, sexuais, psicológicos ou económicos, de modo directo ou indirecto, a qualquer pessoa que resida habitualmente no mesmo espaço doméstico ou que, não residindo, seja cônjuge ou ex-cônjuge, companheiro/a ou ex-companheiro/a, namorado/a ou ex-namorado/a, ou progenitor de descendente comum, ou esteja, ou tivesse estado, em situação análoga; ou que seja ascendente ou descendente, por consanguinidade, adopção ou afinidade.
A violência exercida entre pessoas do mesmo sexo no seu relacionamento também está englobada neste conceito.
Esta definição implica a referência a vários crimes, nomeadamente: o de violência doméstica; o de ameaça; o de coacção; o de difamação; o de injúria; o de subtracção de menor; o de violação de obrigação de alimentos; o de violação; o de abuso sexual; o de homicídio; e outros.
A violência doméstica funciona como um sistema circular – o chamado ciclo da violência doméstica – que apresenta, regra geral, três fases:
1. Fase de aumento da tensão: as tensões quotidianas acumuladas pelo/a agressor/a que este/a não sabe/consegue resolver, criam um ambiente de perigo iminente para a vítima que é, muitas vezes, culpabilizada por tais tensões.
Sob qualquer pretexto o/a agressor/a direcciona todas as suas tensões sobre a vítima. E os pretextos, que podem ser muito simples, são usualmente situações do quotidiano, como exemplo, acusar a vítima de não ter cozinhado ou cozinhado com sal a mais, de ter chegado tarde a casa ou a um encontro, de ter amantes, etc.
2. Fase do ataque violento: o/a agressor/a maltrata, física e psicologicamente a vítima (homem ou mulher), que procura defender-se, esperando que o/a agressor/a pare e não avance com mais violência.
Este ataque pode ser de grande intensidade, podendo a vítima por vezes ficar em estando bastante grave, necessitando de tratamento médico, ao qual o/a agressor/a nem sempre lhe dá acesso imediato.
3. Fase do apaziguamento ou da lua-de-mel: o/a agressor/a, depois da tensão ter sido direccionada sobre a vítima, sob a forma de violência, manifesta-lhe arrependimento e promete que não vai voltar a ser violento/a.
Pode invocar motivos para que a vítima desculpabilize o comportamento violento, como por exemplo, ter corrido mal o dia, ter-se embriagado ou consumido drogas; pode ainda invocar o comportamento da vítima como motivo para o seu descontrolo. Para reforçar o seu pedido de desculpas pode tratá-la(o) com delicadeza e tentar seduzi-la(o), fazendo-a(o) acreditar que, de facto, foi essa a última vez que ele/a se descontrolou.
Este ciclo é vivido pela vítima numa constante de medo, esperança e amor. Medo, em virtude da violência de que é alvo; esperança, porque acredita no arrependimento e nos pedidos de desculpa que têm lugar depois da violência; amor, porque apesar da violência, podem existir momentos positivos no relacionamento.
O ciclo da violência doméstica caracteriza-se pela sua continuidade no tempo, isto é, pela sua repetição sucessiva ao longo de meses ou anos, podendo ser cada vez menores as fases da tensão e de apaziguamento e cada vez maior e mais intensa a fase do ataque violento. Em situações limite, o culminar destes episódios poderá ser o homicídio.
Actualmente o Código Penal já consagra expressamente (no art. 152º - Violência Doméstica) que existe crime de violência doméstica quando existam "maus tratos físicos e psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais (...) a pessoa de outro ou do mesmo sexo" com quem o agressor "mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem habitação".
Para além deste artigo específico, a lei também criminaliza, por exemplo, as ameaças, a coacção, a difamação, as injúrias, a subtracção de menor, a violação de obrigação de alimentos, a violação, o abuso sexual e o homicídio ou tentativa de homicídio.
Não há dados que sustentem diferentes níveis de violência nos relacionamentos homossexuais e heterossexuais. Aliás, estudos recentes desenvolvidos em Portugal e que reforçam indicadores já encontrados em outros países, revelam que a violência em casais do mesmo sexo é tão frequente como a violência em relacionamentos entre pessoas de sexo diferente.
As semelhanças nas dinâmicas presentes nestes relacionamentos violentos são diversas: nos tipos de violência, nas estratégias do/a agressor/a, no ciclo de violência e no impacto e consequências para as vítimas. Mas existem alguns aspectos distintivos na violência doméstica nos casais de gays e de lésbicas:
- O outing como instrumento de intimidação
Esta é uma estratégia de violência psicológica específica dos casais de gays e de lésbicas: revelar ou
ameaçar revelar a orientação sexual do seu parceiro. Assim, se um/a dos parceiro/as não fez ainda o "outing",
ou seja, não revelou a sua homossexualidade no seio da sua família, rede de amigos e/ou no trabalho, o/a
agressor/a pode utilizar a ameaça de o denunciar como gay ou lésbica como um poderoso instrumento de controlo
e de intimidação da vítima;
- A ligação entre a sua identidade sexual e violência
Para muitas destas vítimas a sua identidade sexual aparece intimamente ligada à/s sua/s relação/ções violentas,
pelo que podem culpabilizar-se pelo facto de estarem a ser vítimas de violência doméstica devido a serem gays
ou lésbicas.
- Violência doméstica como problema dos heterossexuais
Quando se fala de violência doméstica fala-se sobretudo da violência exercida pelo agressor homem contra a
vítima mulher em relacionamentos hetero – a mais conhecida e com maior representação estatística –, podendo
mesmo acreditar-se que as relações entre pessoas do mesmo sexo, supostamente mais equalitárias, estarão a
salvo deste tipo de problemática. Por outro lado, pode considerar-se (erradamente) que o uso da violência
física, é uma característica masculina, pelo que, menos provável nas relações lésbicas.
Este quadro pode levar a que:
- O isolamento e a confidencialidade da comunidade LGBT
Muitas vezes, a reduzida dimensão da rede e das comunidades LGBT a que agressor/a e vítima pertencem pode
dificultar o pedido de ajuda por parte da vítima.
Existe também o receio de ser estigmatizado/a no seu grupo ou do isolamento relacional por parte do/a agressor/a: dificultar ou proibir o contacto com família, amigos e colegas ou mesmo de sair. Isto pode ser especialmente verdade para vítimas que estão envolvidas em dinâmicas de violência no seu primeiro relacionamento.
- O estigma na procura de ajuda
Pelo receio do estigma na procura de ajuda e no contacto com organizações públicas e privadas as vítimas gays
e lésbicas poderão ter dificuldade acrescida em procurar e obter ajuda. Isto, associado a experiências
anteriores de discriminação ou pedidos de ajuda sem sucesso, pode levá-las aumentar o seu isolamento e,
consequentemente, a sua vulnerabilidade.
A APAV, na sua rede nacional de Gabinetes de Apoio à Vítima, existe para apoiar vítimas de crime e de violência independentemente da sua orientação sexual. Um número crescente de vítimas gays e lésbicas têm procurado o apoio da APAV.
A violência doméstica em casais do mesmo sexo está povoada de alguns mitos: alguns desculpabilizam o/a agressor/a e minimizam a sua violência, outros culpabilizam a vítima.
Mito: "A violência nos casais gays e de lésbicas é mútua"
Facto: A violência doméstica é, sobretudo, uma questão de poder e do seu exercício e controlo. Nas vivências violentas homo ou heterossexuais, o exercício desse poder através da violência não se traduz apenas em violência física, mas também psicológica, social, económica. Mesmo relativamente à violência física, o facto de serem dois homens ou duas mulheres não significa que exista um equilíbrio de poder ou de força física.
Mito: "As drogas e/ou o álcool é que o/a tornam violento/a"
Facto: O álcool e a droga podem potenciar a violência ou o grau de violência da agressão, mas não explicam, nem podem desculpabilizar a violência. Culpar as drogas e/ou o álcool servirá apenas para desculpabilizar o/s comportamento/s violentos do/a agressor/a.
Provavelmente o/a agressor/a também já exibiu sinais de violência em situações ou momentos em que não estava sob o efeito do álcool ou droga. A vítima precisa reconhecer e acautelar, nestas circunstâncias, a possibilidade de ocorrência de comportamentos mais violentos.
Mito: "A lei não me protege e a polícia não quer saber"
Facto: A lei protege – actualmente o Código Penal prevê expressamente que o crime de violência doméstica existe nos relacionamentos gays e de lésbicas.
A polícia tem a missão e a obrigação de proteger e ajudar todas as vítimas de crime. A polícia portuguesa, sobretudo na última década, têm vindo a desenvolver um grande esforço nesse sentido. No contacto com a polícia ou outros orgãos de segurança não hesite em fazer valer os seus direitos como vítima. A APAV também pode apoiar nesse contacto.