Testemunhos de vítimas
TESTEMUNHOS
"Quando aconteceu, eu não estava à espera. Conheci-o numa festa, nas férias. Era bonito e senti uma grande atracção por ele. Parecia ser boa pessoa, mas, naquela mesma noite, o cordeiro despiu a pele e o lobo apareceu. Tínhamos ido para um miradouro isolado, à procura de uns bons momentos à frente do mar, escondidos na noite, à espera que a lua desse ainda mais brilho àquele encontro. Romântico, não é? Enganei-me.
Durante muito tempo, culpabilizei-me por ter acreditado que aquela noite seria a esperança de iniciar uma relação especial com alguém especial (coisa que há muito tempo eu desejava, farta de relações que não davam certo). Enganei-me porque, no início, conversámos, demos uns abraços, uns beijos, mas depois tudo descambou.
Foi uma vertigem, disse-lhe que queria parar. Chamou-me de tudo, disse que era o que queria, que estava a pedi-las desde o primeiro momento em que eu olhara para ele na festa. Eu estava aterrada e hoje quero esquecer o que se passou a seguir, mas não consigo. Depois de me ter usado como um objecto, deitou-me para fora do carro. Andei a pé uns três ou quatro quilómetros, num estado indescritível. Consegui bater à porta de uma colega, de quem eu nem sequer era amiga, embora confiasse nela. Fomos ao hospital e tive a coragem de apresentar queixa. Ele havia de enfrentar, pelo menos, a vergonha de ser acusado do crime que cometera. Fiz exames. Tinha medo de ter ficado seropositiva, ou grávida.
Ando a ser acompanhada há meses. Ainda tenho pesadelos, não suporto ver camisas aos quadrados vermelhos (como a que ele tinha, naquela noite), nem carros da mesma marca; e, sobretudo, tenho medo de encontrá-lo. O apoio dessa minha colega, que hoje é a minha melhor amiga; e dos meus pais tem sido fundamental. A minha psicóloga da APAV ajuda-me a perceber que eu não tive culpa do que aconteceu, a recuperar a minha auto-estima e a acreditar que conseguirei vencer este problema. É ainda cedo para tudo isto, mas é preciso ir lutando. Também fiz queixa e agora estou à espera. Não sabia que era tão duro para uma vítima esperar. Mas espero com ajuda de quem sabe ajudar. Muito obrigado pelo vosso apoio."
Susana N., 19 anos
"Vim para Portugal para poder ajudar a minha família no Brasil. Deixei lá meu filho, de três anos, e minha mulher. Graças a alguns amigos e à língua portuguesa, foi mais fácil minha adaptação. Após um ano de trabalho, senti que estava num país irmão, onde a gente falava a mesma língua e tinha um passado comum. Comecei por enviar dinheiro para minha mulher, depois a gente separou. Conheci minha nova companheira aqui.
Para nossa casa nova, fui numa conhecida loja móveis, a fim de preencher a proposta para ser titular do cartão referente ao mesmo estabelecimento. Assim, a gente podia beneficiar de uma promoção de cozinhas que este estabelecimento oferecia, na qual eu poderia pagar em doze vezes sem juros. Para solicitar o cartão, eu teria de juntar a proposta de crédito a uma instituição bancária, bem como fotocópias dos seguintes documentos: Bilhete de Identidade, número de contribuinte, NIB, comprovativo de morada e comprovativo de rendimento.
Sendo de nacionalidade brasileira, eu não tinha Bilhete de Identidade, pelo que substituí por minha Autorização de Residência. No fim do mesmo mês, recebi um telefonema do banco a fim de me informar da recusa do crédito solicitado. Segundo disse a senhora, a decisão devia-se ao facto de ter uma Autorização de Residência válida por apenas dois anos.
Recorri então à UAVIDRE-APAV, que uns amigos conheciam. Esta elaborou uma carta que foi enviada ao banco. Esta teve como base a resposta desta instituição, que tinha sido dada telefonicamente, e consciente que todos os requisitos exigidos para a atribuição de crédito estavam preenchidos.
Como resposta a esta carta, o banco escreveu que não poderia conceder o empréstimo solicitado, não mencionando qualquer razão objectiva para tal. A UAVIDRE, mediante minha autorização, auxiliou na elaboração de uma denúncia desta situação, que foi assinada por mim e posteriormente enviada ao ACIME.
Como base, a referida denúncia sublinhava os fatos:
- que de todos os requisitos de atribuição de crédito exigidos pela instituição de crédito foram preenchidos. Inclusive, que eu tinha um rendimento líquido superior ao exigido para a atribuição do crédito, tendo uma relação laboral estável;
- o único motivo mencionado (via telefónica) como base da recusa, prendia-se com a existência de uma Autorização de Residência de dois anos (apesar do pagamento do crédito ter o prazo de doze meses);
- que as únicas pessoas que têm Autorização de Residência são cidadãos de nacionalidade diversa da portuguesa.
Após a ajuda na elaboração da denúncia, fui de novo na UAVIDRE com uma carta da instituição de crédito, na qual referiam de novo a impossibilidade de atribuir o crédito, sem no entanto justificarem a razão da recusa. É evidente que se trata de uma situação absurda de discriminação, contra a qual ainda estou batalhando. Felizmente, não estou sozinho."
Jefferson, 31 anos
"Encontro-me numa situação difícil. Na minha idade e com os problemas de saúde que tenho é natural que esteja nesta situação. Nunca me dei bem com a minha filha, sobretudo porque nunca concordei com o casamento dela. Não sei se interferi demais, não sei se fiz algum mal. Passaram os anos, os problemas sucederam-se. Criei-a sozinha, com um ordenado baixo e muitas agruras. Eram outros tempos, tive de manter o respeito, porque não queria que ela fosse uma leviana. O casamento dela não deu resultado. Nunca poderia dar, eu vi logo. Culpa-me a todo o instante de ser uma frustrada. Eu continuo a achar que se ela tivesse trabalhado mais, como eu fiz, hoje não era uma mulher frustrada só porque o marido a trocou por outra.
Estou numa situação de quase miséria, porque todo o dinheiro que tenho é para ajudar a pagar o empréstimo do apartamento da minha filha, que, para além disso, me vendeu o ouro e um relógio que tinha sido do meu pai. Algumas pratas também já foram à vida. Vão-se os anéis e ficam os dedos, diz o povo. Mas, no meu caso, não sei se, um dia destes, os próprios dedos me ficam. Já não é a primeira vez que me bate… E também me fecha no quarto quando não lhe convém que eu esteja à vista quando leva os namorados lá a casa.
O problema é que eu amo a minha filha, como uma mãe ama um filho. Mas não consigo perceber onde errei na educação dela para merecer isto… Pedi apoio recentemente e ainda não decidi o que quero fazer. Mas já sei que posso fazer alguma coisa, que ainda sou senhora da minha vontade e das minhas coisas. A minha filha não pode fazer-me isto só porque estou velha."
Deolinda, 75 anos
"Mataram o meu adorado filho, o único que eu tinha. Naquele dia, a minha vida acabou e eu quis morrer também. Não há nada mais terrível que a morte de um filho, ainda por cima quando alguém o mata, sem dó nem piedade. Foi um assalto, aqueles malandros podiam tirar-me tudo o que eu tenho, podiam levar até a roupa do corpo, mas não o meu maior tesouro. Não sei se alguma vez vou recuperar. Sonho todas as noites com o meu filho, vou ao cemitério todas as semanas visitá-lo. Espero ansiosamente que a Justiça condene os assassinos. É o mínimo que podem fazer, pois o meu querido filho já não volta a viver. Tinha só vinte e dois anos, tinha a vida pela frente. Mataram-mo por causa de uma porcaria de um fio de ouro e de um telemóvel. É uma dor insuportável. Sei que o que eu estou a viver é um processo de luto.
Sei que tenho de viver e de ajudar a minha mulher a viver. Tenho recebido ajuda. Desde que desabafo e falo sobre o que sinto que tenho andado melhor. Talvez um dia eu consiga dominar melhor esta tristeza. Se o meu filho estivesse vivo, queria que eu me animasse e que vivesse, que viajasse, que tivesse uma vida alegre. Não tenho vontade, mas estou a esforçar-me por isso."
Vasco, 59 anos
"O meu marido sempre me bateu, desde o namoro. Há um dia em que a gente não aguenta mais e decide mudar de vida, sair, ter liberdade para ser feliz. Não foi fácil, tive se sair para uma cidade que não conhecia, ter um emprego que não era o meu (trabalho numa pastelaria); e agora já tenho uma casinha que é arrendada. É muito pequenina, mas tenho comigo a minha filha, que está na escola. A única coisa que eu lamento é não ter as coisas todas resolvidas no tribunal. Assim uma pessoa fica sempre presa a um passado que quer esquecer. Não me arrependo de ter deixado tudo para trás. Quando temos um problema destes, acho que temos de aceitar a ideia de perder algumas coisas para podermos ser livres. Eu perdi o meu emprego, algumas amizades, o convívio com os familiares, a minha casa e até algumas coisas sem valor, mas que eram recordações da minha mãe e que muito estimava. Tenho ainda muita amargura no coração, mas até a amargura eu hei-de vencer. É preciso dar tempo ao tempo e não esperar milagres. O que eu quero dizer é que é preciso ter esperança, mas não ficar quieta à espera que ele mude ou que venha alguém resolver um problema que nunca mudou, desde novos.
Hoje a minha filha é muito mais feliz, temos amigos, vizinhos, as minhas colegas são espectaculares. Tive apoio de várias instituições, fui ao Apoio à Vítima, bati às portas e fui corajosa. A minha filha e eu merecíamos uma vida melhor. Ainda nos falta muito para termos aquilo que sonhamos, e talvez a gente nunca chegue a ter tudo, mas isto já temos e foi resultado do nosso esforço. Somos guerreiras e a vitória faz-se por batalhas."
Gertrudes Maria, 45 anos
"Os outros estavam sempre a bater-me na escola. Eu não lhes batia, porque sou contra a violência e porque é contra a minha religião. Era uma vítima por ser gordo e por ter muitas borbulhas na cara. Batiam-me também por causa da minha Igreja e por eu cantar em louvor com duas colegas de outra turma. Chamavam-me nomes e atiravam-me a mochila para fora do autocarro. Estava sempre a perdoar-lhes, mas cada vez era mais difícil aceitar. Não sabia o que fazer e comecei a tirar más notas, a ter pesadelos e a não querer ir à escola. Tinha pânico quando a segunda-feira chegava. Agora estou a ter um psicólogo das vítimas. O meu pai decidiu que eu podia mudar de escola e eu estive de acordo. Estou a adaptar-me à nova escola. Não sei o que vai ser o futuro. Tenho fé, e tenho a certeza que não vou deixar que comece a violência. Falarei com os professores, não vou isolar-me. Os outros vão conhecer um novo Rodrigo, diferente deles, mas porreiro e capaz de não deixar que certas coisas aconteçam. Agradeço a Deus e aos meus pais, e aos professores e ao apoio."
Rodrigo, 13 anos
"Fui vítima de crime e fiquei traumatizado durante muito tempo. Estava a sair de uma festa, à noite e vinha vestido de mulher, porque a festa era temática e porque, independentemente de ser temática, gosto de ir a festas deste género vestido, maquilhado e penteado de forma muito excêntrica e feminina. Sou livre, faço o que me apetece e nunca fiz mal a ninguém. Mas vivo numa sociedade podre, que não me aceita por causa da minha orientação sexual. Desde muito novo que aprendi a sobreviver a comentários e a olhares de gente ignorante que ganhava mais se olhasse para si mesma e visse que fica muito ridícula quando se dá a esse tipo de comportamentos ridículos, a esse modo de ser que só revela mesquinhez e inteligência curta.
Estava eu a sair da festa, tinha bebido um bocadinho, mas nada de exageros. Estava sozinho e ia para o carro. Fui surpreendido por três indivíduos novos, com muito bom aspecto, mas infelizmente com muito mau carácter, porque começaram a troçar e a apalpar-me, atirando-me para o chão. Fui violentamente agredido e injuriado. Levei pontapés, cuspidelas e, no fim, um urinou-me em cima.
Ninguém apareceu para me socorrer e aqueles três betinhos, que pareciam tão bem formados, deixaram-me naquele estado. Tinha sangue e urina, nódoas negras, tinha as meias rasgadas, a cara borrada, e não tinha sapatos, porque os atiraram para trás de um muro alto. Felizmente, não fui morto, como já aconteceu a outras pessoas. Foi violência gratuita. E no fim roubaram-me a mala e nunca mais vi os documentos, as chaves de casa, do carro… e o dinheiro que eu tinha para o resto da noite. Consegui arrastar-me até ao bar e pedi ajuda ao porteiro, que me conhecia. Tive ajuda imediata de amigos, e a solidariedade de conhecidos e até de desconhecidos. Mas não quis fazer queixa. Fui apenas ao hospital, onde ainda senti alguns sorrisos trocistas por causa da minha roupa e adereços. Com o tempo, fiquei muito deprimido e com medo de sair à rua de noite.
Pedi ajuda à APAV, pois uma amiga conhecia o apoio que davam. É bom termos apoio, não apenas dos nossos amigos, mas também da parte de quem nos trata como pessoas. Tive de tratar dos documentos, mudar a fechadura da casa, etc. E, sobretudo, precisei de chorar e de ter quem me ouvisse com respeito e compreensão."
Paulo, 25 anos
"Naquele dia, tive de ficar no trabalho até tarde. Tinha umas coisas urgentes e acabei por comer uma sanduíche à secretária e continuei a trabalhar até mais tarde. Saí pelas 22, 30 horas e estava a ir para o metro quando me apareceu pela frente um rapaz a dizer qualquer coisa que eu não percebi. Estava tão cansada que lhe respondi automaticamente Não, muito obrigada, porque pensei que estava a tentar vender-me alguma coisa, ou a dar-me um panfleto. Era um assalto.
Fiquei paralisada pelo medo. De repente, percebi que estava numa rua sem gente, sem grande iluminação, com aquele rapaz ali à frente, a apontar-me uma faca. Fiquei varada pelo medo. Não sei o que se passou depois, naquele momento só me lembrei das minhas filhas em casa, do meu marido, da minha mãe. E parecia que o pensamento não discorria para além da imagem daqueles que eu mais amava e que, subitamente, ali, numa rua da cidade, eu podia perder para sempre. Dei-lhe a mala, depois ele arrancou-me o colar de ouro com o medalhão de madrepérola. Devo ter tirado dois anéis e a aliança de casamento, mas não me lembro sequer como foi. Sei que nem fui capaz de gritar. Andei umas ruas e encontrei um agente da Polícia. Fiz queixa, o meu marido veio logo depois. Não dormi nessa noite, só chorava e tinha medo.
O meu marido ajudou-me bastante, foi ele que, no dia seguinte, ligou à APAV, que a Polícia recomendou. Fui logo lá, com ele. Fui bem atendida, tivemos informações práticas importantes para resolver a questão dos documentos. Eu não tinha muito dinheiro na conta, felizmente, mas anulei o cartão Multibanco. Durante várias semanas estive dormente. Depois comecei a ficar cada vez mais deprimida. O meu marido tinha de me ir buscar ao trabalho. Foi um tempo difícil. Agora já estou bastante melhor. Ainda fui várias vezes à APAV. Quanto à Justiça, o processo foi arquivado. Nunca apareceu nada da minha mala, nem as minhas jóias. Uma delas faz-me muita falta, não porque fosse de ouro, mas porque tinha um valor afectivo muito grande. Tudo isto vai passar. No entanto, tenho muita pena que o assaltante não tenha sido apanhado. Gostava de lhe perguntar se tem mãe e se gostava que lhe fizessem o mesmo. Estou certa que diria que não."
Maria Adelaide, 43 anos
"Sou educadora de infância e acho que, nós, os educadores, temos a obrigação de estar muito atentos às crianças e ao ambiente familiar em que vivem. Uma das meninas da minha sala sofria de frequentes infecções urinárias e os pais não manifestavam grande interesse. Para ser mais precisa, quem parecia para falar comigo era a avó.
Às infecções urinárias seguiram-se algumas queixas de dores abdominais e alguns relatos bastante estranhos. A menina fazia alguns comentários que levaram suspeitas quanto a um possível abuso sexual por parte do próprio pai. Reuni com a minha directora e com a psicóloga do Jardim; e decidimos agir rapidamente. Telefonámos para o Gabinete de Apoio à Vítima e a psicóloga de lá fez um atendimento com a menina. Havia indícios fortes de que realmente se tratava de um abuso. A APAV fez a denúncia da situação e informou também a Comissão de Protecção de Crianças.
Depois de uma intervenção que eu considero rápida e eficiente, a situação foi resolvida, para já, com uma decisão da mãe da criança que a pôs a salvo: separar-se do marido, indo morar com a avó da criança. O mais importante era o superior interesse da criança, como muitas vezes se falou nestes atendimentos e reuniões, nos quais várias instituições se juntaram para impedir que o crime prosseguisse. A menina está psicologicamente bem. Tudo foi resolvido com calma e discrição."
Sónia, 37 anos