A mediação vítima-infractor e os direitos das vítimas

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O APOIO À VÍTIMA E A MEDIAÇÃO

Se quisermos, numa frase, descrever a postura dominante entre os profissionais e organizações de apoio à vítima relativamente à mediação vítima-infractor, podemos dizer o seguinte: esta prática tem vindo gradualmente a merecer aceitação, se bem que com algumas reservas e colocada no seu devido lugar.

As reservas decorrem de todos os aspectos acabados de enunciar, porquanto estes contendem com salvaguardas fundamentais das vítimas no âmbito da mediação: questões como o consentimento livre e informado, a preparação das vítimas ou a adequada formação dos mediadores têm que estar devidamente garantidos sob pena de ocorrência de fenómenos de vitimação secundária.

Quanto ao posicionamento da mediação, os técnicos e organizações de apoio à vítima chamam a atenção para o facto de, na prática, este mecanismo estar disponível apenas para uma escassa minoria de vítimas: sabendo que uma percentagem significativa de crimes não é reportada às autoridades; sabendo que, de entre os crimes que são reportados, apenas nalguns se apura o seu autor; sabendo que, de entre estes, só nalguns se pode recorrer à mediação, em virtude dos critérios, legais ou convencionais, em vigor; e sabendo, por fim, que de entre estes, apenas nalguns os infractores acedem a participar, fica claro que a mediação acaba por ter um campo de aplicação bastante limitado.

 

Por outro lado, os timings não coincidem, isto é, o momento em que a vítima começa a necessitar de apoio não é sincronizável, por ser obviamente anterior (imediatamente após o crime), com o momento em que a mediação é possível e adequada.

Estas razões demonstram a impossibilidade de a mediação responder, de forma exclusiva, a todas as necessidades das vítimas, pois estas vão muito para além daquilo que pode resultar de um processo de comunicação com o infractor. A mediação vítima-infractor não é apoio especializado à vítima de crime.

Isto não significa contudo um juízo de inutilidade da mediação, pois as suas virtudes relativamente às vítimas são por demais reconhecidas. Deve assim ser perspectivada como um dos instrumentos integrantes de um plano alargado de apoio e assistência que, em conjugação com outros, pode contribuir decisivamente para a ultrapassagem por aquelas dos efeitos resultantes do crime sofrido.

 

O Victim Support Europe, entidade que congrega organizações nacionais de apoio à vítima existentes na Europa, aprovou em Maio de 2004 a Declaração relativa ao Estatuto da Vítima no Processo de Mediação, na qual, aderindo à justiça restaurativa (enquanto meio de promoção e protecção dos direitos e interesses das vítimas) e reconhecendo o impacto e os méritos da mediação, levanta contudo algumas questões ainda mal ou não totalmente resolvidas e que cumpre acautelar.

 

Propõe esta Declaração alguns princípios, relativos às vítimas, que devem nortear a mediação:

» A mediação requer o envolvimento da vítima, sendo como tal essencial que os interesses desta sejam plenamente considerados – e o interesse das vítimas tem que começar a ser considerado logo na selecção, quer destas, quer dos infractores;

» O recurso à mediação depende do consentimento livre e informado das partes, devendo reconhecer-se a estas o direito de desistirem a todo o tempo;

» A mediação vítima-infractor difere dos processos de mediação noutras áreas – o processo de mediação vítima-infractor deve incluir a assumpção por este da responsabilidade pelo seu acto e o reconhecimento das consequências nefastas do crime para a vítima;

» É imprescindível que o mediador e outros intervenientes no processo de mediação tenham recebido formação adequada relativamente às problemáticas específicas das vítimas de crimes.

 

São igualmente preconizados alguns direitos fundamentais das vítimas de crimes no processo de mediação:

» Reconhecimento do seu estatuto enquanto vítimas e protecção da sua posição;

» Informação cabal sobre o processo e possíveis resultados bem como informação acerca dos procedimentos de supervisão da implementação de eventuais acordos;

» Informação sobre onde obter apoio e aconselhamento;

» Disponibilização do tempo necessário para a tomada de decisão e obtenção de aconselhamento (varia consoante o crime e as características da vítima);

» Igualdade de acesso a assistência jurídica antes, durante e depois do processo, assistência que deve estar prevista no âmbito do apoio judiciário;

» Possibilidade de escolha entre mediação directa e indirecta.

 

 

 

Mediação vítima-infractor em Portugal

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MEDIAÇÃO COM JOVENS INFRACTORES

O sistema jurídico português prevê expressamente a figura da mediação na Lei Tutelar Educativa (Lei 166/99, de 14 de Setembro), diploma resultante da profunda reforma operada no direito de menores – reorientado numa perspectiva responsabilizadora, pedagógica e reparadora em detrimento da óptica proteccionista, anteriormente vigente - e que se aplica nos casos em que um jovem com idade compreendida entre os 12 e os 16 anos pratica um facto qualificado pela lei penal como crime (podendo a execução das medidas alargar-se até aos 21 anos).

A mediação no âmbito da Lei Tutelar Educativa apresenta-se claramente centrada no jovem infractor, uma vez que se desenvolve no âmbito de uma intervenção – a intervenção tutelar – cuja finalidade é, nas próprias palavras da exposição de motivos daquela Lei, a educação do menor para o direito e não a retribuição pelo crime.

O processo tutelar está estruturado em duas fases:

» a fase de inquérito, presidida pelo Ministério Público, visa apurar a existência do facto, a prova da sua prática pelo menor e a necessidade de aplicação a este de uma medida tutelar; esta fase termina com a suspensão – mecanismo de diversão introduzido pela nova lei -, arquivamento ou com o requerimento de abertura da fase jurisdicional;

» a fase jurisdicional, presidida pelo juiz, compreende a comprovação judicial dos factos, a avaliação da necessidade de aplicação de medida tutelar e a determinação e execução da medida tutelar.

 

De entre as medidas tutelares previstas, refira-se as que visam directamente finalidades de reparação:

» reparação ao ofendido (apresentação de desculpas, compensação económica, exercício em benefício do ofendido de actividade que se conexione com o dano);

» prestações económicas (entrega de determinada quantia em benefício de entidade, pública ou privada, de fim não lucrativo);

» tarefas a favor da comunidade (exercício de actividade em benefício de entidade, pública ou privada, de fim não lucrativo).

 

O recurso à mediação depende de determinação da autoridade judiciária – procurador ou juiz -, ainda que a iniciativa possa ter partido do menor, seus pais ou representante legal.

Se a autoridade judiciária é, assim, a gatekeeper da mediação, a entidade responsável pela implementação desta prática é a Direcção Geral de Reinserção Social (DGRS), do Ministério da Justiça: enquanto órgão auxiliar da administração da justiça que tem como objectivos a reintegração social de delinquentes e o apoio à jurisdição de menores, e reconhecendo as potencialidades da utilização da mediação no contexto das finalidades propugnadas pela LTE e o facto de esta ser um meio de resolução de conflitos originados pela prática de facto ilícito que melhor materializa o Principio da Intervenção Mínima - um dos princípios orientadores da intervenção tutelar educativa – a DGRS decidiu, na ausência de outras entidades públicas ou privadas de mediação, criar em 2002 o Programa de Implementação da Mediação em Processo Tutelar Educativo: programa de acção, a nível nacional, destinado a criar e a fomentar melhores condições técnicas e logísticas para a execução de decisões das autoridades judiciárias que determinem processos de mediação.

Na Fase de Inquérito, presidida pelo Ministério Público, o Programa de Mediação e Reparação disponibiliza as seguintes intervenções:

» mediação entre infractor e vítima com vista à conciliação e/ou reparação, sempre que o Ministério Público o determine e encaminhe o caso para os serviços de mediação. O acordo resultante é depois enviado para aquela autoridade judiciária que, caso o aprove, promoverá a sua execução e o subsequente arquivamento do processo;

» apoio na elaboração do plano de conduta – verificadas as condições legalmente previstas e sempre que haja uma vítima concreta e o menor reúna os requisitos básicos de acesso, o programa dá prioridade ao recurso à mediação, sendo os compromissos aí assumidos vertidos para um plano de conduta, que é enviado para o tribunal que, com base neste, poderá decidir-se pela suspensão do processo.

 

Em ambas as intervenções descritas, o acesso ao processo de mediação depende da verificação de que quer o menor quer a vítima reúnem os requisitos básicos. Esta verificação é efectuada através de entrevistas individuais, nas quais são aferidos os seguintes aspectos:

Relativamente ao menor:

» reconhecimento por parte do menor da sua responsabilidade e/ou participação nos factos imputados e nos danos por eles provocados;

» capacidade e vontade em conciliar-se e/ou em encontrar soluções reparadoras do dano provocado;

» vontade de participar no processo de mediação com vista a solucionar o conflito e a cumprir os compromissos assumidos.

 

Relativamente à vitima:

» avaliação dos danos e do grau de vitimação;

» capacidade e interesse em conciliar-se e em ser reparado;

» vontade de participar num processo de mediação.

 

Tal como preconizado na Recomendação Nº R (99) 19 do Conselho da Europa, tem-se ainda em conta na avaliação das partes as diferenças relacionadas com factores como a idade, maturidade ou capacidade intelectual, enquanto factores essenciais para um cabal entendimento do sentido deste processo.

Se o menor revela vontade em conciliar-se e/ou executar uma acção reparadora mas não é possível a realização da mediação ou não se obtém acordo, essa predisposição não é ignorada, sendo aquele incentivado e apoiado pelo programa a procurar outras soluções, como sejam a reparação à comunidade, por exemplo sob a forma de prestação de tarefas, ou a prossecução de objectivos de formação pessoal ou escolar.

Por último, o Ministério Público pode determinar a cooperação da Direcção Geral de Reinserção Social para apoiar o menor na concretização de compromissos assumidos no acordo de mediação ou no plano de conduta (que, relembre-se, poderá conter obrigações definidas no âmbito de um processo de mediação). No final da sua execução é avaliada a atitude e o grau de cumprimento dos compromissos assumidos pelo menor, avaliação essa que inclui uma análise acerca de todo o processo efectuada pelo próprio menor e pelos destinatários da(s) prestação(ões). Com base nesta informação é elaborado um relatório para o Ministério Público.

Nos casos em que o menor não cumpre os compromissos assumidos, o técnico informa o Ministério Público, podendo este dar continuidade à tramitação do processo.

Na fase jurisdicional, a intervenção dos serviços de mediação visa a obtenção de um consenso relativamente à medida tutelar educativa não institucional a aplicar ou às condições de execução desta. O recurso à mediação nesta fase do processo tem tido expressão diminuta.

Para mais informações: agência governamental para a reinserção social encarregada da mediação com jovens infractores: Direcção-Geral da Reinserção Social (Ministério da Justiça).

 

 

 

 

MEDIAÇÃO COM ADULTOS INFRACTORES

Em 2005, o Ministério da Justiça deu início à preparação de um diploma legal tendente a introduzir a mediação vítima-infractor no ordenamento jurídico português. A proposta foi submetida a debate público, tendo sido aprovada pela Assembleia da República em 12 de Abril de 2007 e entrado em vigor em 12 de Julho do mesmo ano - Lei nº21/2007, que cria um regime de mediação penal.

Esta lei veio dar cumprimento ao artigo 10º da Decisão-Quadro do Conselho da União Europeia relativo ao Estatuto da Vítima em Processo Penal, que obriga os Estados-Membros a implementar mecanismos de mediação nos seus ordenamentos jurídicos. Complementarmente foram aprovadas três Portarias (ns.º 68-A/2008, 68-B/2008 e 68-C/2008, todas de 22.1) e um Despacho (n.º 2168-A/2008, também de 22.1) que regulamentam aspectos específicos deste programa.

Os traços fundamentais do regime legal de mediação são os seguintes:

» podem ser encaminhados para mediação processos por crimes contra as pessoas e por crimes contra o património, semipúblicos e particulares, puníveis com pena de prisão igual ou inferior a 5 anos de prisão ou com pena de multa, com excepção dos casos em que a vítima é menor de 16 anos, quando o arguido é uma pessoa colectiva ou quando se trata de crimes contra a liberdade ou a autodeterminação sexual;

» caso tenham sido recolhidos indícios de se ter verificado crime e de que o arguido foi o seu agente, pode o Ministério Público em qualquer momento da fase de inquérito, se entender que desse modo se pode responder adequadamente às exigências de prevenção, remeter o processo para mediação, disso dando conhecimento à vítima e ao arguido;

» a mediação pode também ser requerida pela vítima ou pelo infractor;

» não resultando da mediação acordo ou se o processo de mediação não estiver concluído no prazo de 3 meses (prorrogável por mais 2 meses por solicitação do mediador, em caso de forte probabilidade de acordo), o mediador informa disso o Ministério Público, prosseguindo o processo penal;

» a assinatura de acordo equivale a desistência de queixa por parte da vítima e à não oposição por parte do arguido, podendo aquela, caso o acordo não seja cumprido no prazo fixado, renovar a queixa no prazo de um mês, sendo reaberto o inquérito;

» o acordo não pode incluir deveres cujo cumprimento se deva prolongar por mais de 6 meses;

» nas sessões de mediação, os intervenientes devem comparecer pessoalmente, podendo fazer-se acompanhar de advogado;

» o teor das sessões de mediação é confidencial, não podendo ser valorado como prova em processo penal;

» pelo processo de mediação não há lugar ao pagamento de custas;

» pode candidatar-se às listas de mediadores penais quem tiver mais de 25 anos, tiver licenciatura ou experiência profissional adequadas e estiver habilitado com um curso de mediador penal reconhecido pelo Ministério da Justiça;

» os serviços de mediação funcionarão junto de alguns dos julgados de paz, aproveitando a logística e a organização destes.

 

A proposta de lei opta por não regulamentar excessivamente os aspectos internos da condução da mediação, deixando-os às regras próprias da profissão de mediador, deontologia profissional e manuais de “boas práticas”

Para mais informações - agência governamental encarregada do sistema de mediação penal: GRAL – Gabinete de Resolução Alternativa de Litígios (Ministério da Justiça).

 

Principais modelos restaurativos

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MEDIAÇÃO VÍTIMA-INFRACTOR

O que é a mediação vítima-infractor? É, em primeiro lugar, um processo, ou seja, um conjunto de actos sequencialmente organizados de modo a atingir uma determinada finalidade. Este processo possibilita à vítima encontrar-se com o infractor na presença de um terceiro imparcial – o mediador. Ambos os intervenientes expressam o seu ponto de vista e os seus sentimentos acerca do crime: a vítima tem a oportunidade de confrontar o infractor com o impacto do seu acto, este tem por sua vez a oportunidade de assumir perante aquela a responsabilidade pela sua conduta e de compreender o mal que esta provocou. Para além disto, vítima e infractor têm a possibilidade de delinear, em conjunto, um plano de “restauração”, de reparação do dano causado, plano que se afigure justo e adequado àquele caso concreto.

Este processo pauta-se por três princípios fundamentais:

» voluntariedade dos intervenientes;

» imparcialidade e neutralidade do mediador;

» confidencialidade do processo.

 

O papel do mediador não é o de impor um acordo entre os intervenientes, mas sim o de promover a interacção entre vítima e infractor de modo a que cada um assuma um papel activo na construção de uma solução tida como justa por ambos.

A configuração típica de um processo de mediação abrange quatro fases:

» a entidade responsável pela selecção de casos envia a situação para os serviços de mediação;

» o mediador contacta (em separado) a vítima e o infractor, confirmando que ambos reunem os pressupostos para participar na mediação (designadamente se estão em condições psicológicas de fazer com que esta decorra de modo construtivo, se a vítima não sofrerá vitimação secundária decorrente do encontro com o infractor, se ambos percepcionam a sua participação como voluntária) e preparando-os para a mediação – esta fase é geralmente designada pré-mediação;

» os intervenientes encontram-se e, na presença do mediador, apresentam a sua versão dos factos, exprimem os seus sentimentos e emoções e tentam acordar quanto à natureza e extensão do dano de modo a identificar os actos necessários à reparação – é a sessão (ou sessões) de mediação propriamente dita;

» a entidade responsável pela monitorização do acordo verifica o seu cumprimento.

 

Cumpre aqui proceder a uma importante distinção entre mediação directa e indirecta: na mediação directa vítima e infractor encontram-se efectivamente, “cara-a-cara”; na mediação indirecta tal não sucede, pelo que o contacto entre aqueles é efectuado através de um intermediário – o mediador -, que ou transmite oralmente a cada um as mensagens do outro, ou entrega as cartas ou os depoimentos gravados em áudio ou vídeo. Se é certo que a mediação directa é mais consentânea com os princípios e características da justiça restaurativa e tem provado na prática ser mais eficaz e satisfatória, não é menos verdade que a mediação indirecta tem sido também profusamente (nalguns casos até maioritariamente) utilizada, pois muitos casos há em que vítima e/ou infractor, querendo embora participar num processo de mediação, não pretendem encontrar-se directamente com o outro o que, em nome da autonomia e da voluntariedade que lhes assiste, é aceite pela entidade responsável pela mediação.

 

 

 

 

CONFERÊNCIA DE GRUPOS FAMILIARES OU COMUNITÁRIOS 

Esta prática, adaptada das tradições ancestrais dos povos nativos da Nova Zelândia, em que a família alargada e a comunidade têm um papel determinante, emergiu formalmente em 1989 neste país, com a aprovação do Children, Young Persons and Their Families Act.: face aos índices particularmente elevados de criminalidade entre os maori, e perante a crescente insatisfação destes pelo facto de o sistema de justiça juvenil de cariz ocidental lhes “roubar” a resolução dos problemas dos seus membros mais jovens, entregando-a a “estranhos”, veio aquele dispositivo legal determinar a criação de um mecanismo no qual, ao invés de ser o tribunal, com a colaboração da polícia e dos serviços de apoio aos jovens, a decidir, é a família do próprio jovem, em conjunto com a vítima e com grupos comunitários de suporte, quem determina a sanção a aplicar.

Esta prática é semelhante à mediação vítima-infractor, só que envolve um conjunto de pessoas mais alargado - familiares, grupos comunitários, polícia, serviços sociais e advogados -, com o intuito de demonstrar ao jovem infractor que a comunidade se preocupa com ele, responsabilizando-o assim perante esta. É neste âmbito que ganha especial dimensão o célebre conceito restaurativo, enunciado por John Braithwaite, de reintegrative shame, ou vergonha reintegradora (por oposição a disintegrative shame – vergonha desintegradora ou estigmatização): o infractor é exposto à censura da comunidade, que denuncia a sua conduta como inaceitável, mas que simultaneamente assume o compromisso de fazer todos os esforços para o reintegrar (Braithwaite, 1989).

O processo desenrola-se de forma semelhante à descrita relativamente à mediação vítima-infractor: remetido o caso pela entidade competente, o facilitador vai procurar conhecer um pouco melhor os intervenientes e constituir, em conjunto com estes, o grupo de pessoas que tomará parte na conferência, na qual, após a narração dos factos e a expressão de emoções pela vítima e pelo infractor, é aberto um espaço de diálogo no qual os outros intervenientes podem intervir. Por fim, e em conjunto, todos procurarão estabelecer as linhas do acordo sobre a reparação da vítima.

O eventual mérito acrescido desta prática passa pelo facto de, ao envolver a rede de suporte do infractor, se responsabilizar também esta não só pelo cumprimento do acordo estabelecido mas também relativamente à necessidade de alteração de comportamento daquele.

Esta prática foi posteriormente implementada, com características específicas que diferem de sítio para sítio, na Austrália (sendo conhecida como modelo de Wagga Wagga, cidade localizada na Nova Gales do Sul onde foi primeiramente implementada), EUA, Canadá e Inglaterra e Gales: em Inglaterra, os serviços de conferência, sediados na Thames Valley Police, lidam com crimes menores, mas na Austrália é utilizada face a crimes de gravidade média, sendo o facilitador um agente policial, e não um técnico social, como sucede na Nova Zelândia.

 

Justiça Restaurativa - O que é?

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CONTEXTO DE SURGIMENTO

A Justiça Restaurativa é uma corrente relativamente recente nas áreas da vitimologia e da criminologia. Surgida em meados da década de 70, nasce associada à proclamação do fracasso da denominada justiça retributiva, incapaz de dar respostas adequadas ao crime e às problemáticas específicas de vítimas e infractores.

O sistema de justiça criminal tradicional concebe e encara o crime - o acto criminoso - como um conflito entre o Estado (ou o sistema formal de justiça criminal) e o infractor - o autor do crime. Tem natureza retributiva, na medida em que as suas respostas se centram no acto criminoso, e é formalmente legalista e garantístico. Ninguém hoje duvida de que este sistema se encontra longe da perfeição, estando à vista de todos uma série de elementos indiciadores da sua crise: a finalidade pouco clara da punição (reabilitar e promover a alteração do comportamento do infractor? Inibir outros de praticarem crimes? Afastar, pelo menos temporariamente, o infractor da sociedade, no intuito de proteger esta?), a ineficácia do aumento das penas, os custos astronómicos consumidos pela máquina judicial e, especialmente, pelo sistema prisional, a elevada taxa de reincidência e o escasso envolvimento das vítimas.

Face a este fracasso do actual sistema de justiça criminal, com consequências particularmente visíveis ao nível do crescente sentimento de insegurança – potenciado pela projecção mediática dos processos mais sonantes, diariamente acompanhados por rádios, televisões e jornais -, são em abstracto configuráveis dois caminhos alternativos: ou “mais do mesmo”, isto é, ou se dota o actual sistema de mais meios humanos e materiais, aumentando-se o número de tribunais, de magistrados, de prisões e, eventualmente, se agravam as penas, ou se desenvolvem e exploram novas ideias e modelos para lidar com o fenómeno da criminalidade. A denominada justiça restaurativa revê-se neste segundo caminho.

 

 

O QUE É?

Encontra-se na literatura sobre a matéria inúmeras definições de Justiça Restaurativa, nem sempre coincidentes. As duas definições mais recorrentemente mencionadas e consensualmente aceites:

"É um processo através do qual as partes envolvidas num crime decidem em conjunto como lidar com os efeitos deste e com as suas consequências futuras." (Marshall, 1997)

"É um processo no qual a vítima, o infractor e/ou outros indivíduos ou membros da comunidade afectados por um crime participam activamente e em conjunto na resolução das questões resultantes daquele, com a ajuda de um terceiro imparcial." (Projecto de Declaração da ONU relativa aos Princípios Fundamentais da Utilização de Programas de Justiça Restaurativa em Matéria Criminal).

 

 

 

 

PRINCÍPIOS, VALORES E CARACTERÍSTICAS FUNDAMENTAIS

A Justiça Restaurativa é uma forma diferente de perspectivar como é que todos nós, enquanto vítimas, infractores, autoridades policiais e judiciárias e comunidade em geral devemos responder ao crime. É um novo padrão de pensamento, que vê o crime não meramente como violação da lei, mas como causador de danos às vítimas, à comunidade e até aos infractores. Centra-se na activa participação das vítimas, agressores e comunidades, muitas vezes concretizada através de encontros entre estes, num esforço para identificar a injustiça praticada, o dano resultante, os passos necessários para a sua reparação e as acções futuras que possam reduzir a possibilidade de ocorrência de novos crimes.

A justiça restaurativa coloca a vítima e o infractor no centro do processo, como seus protagonistas, procurando o empowerment e a satisfação das partes, a reparação dos danos sofridos, o envolvimento comunitário e a restauração das relações humanas existentes. Perspectiva o crime como uma perturbação nas relações entre pessoas que vivem em conjunto numa comunidade, numa sociedade ou nas relações entre o infractor e a comunidade onde se insere.

São geralmente apontados três elementos fundamentais do conceito de Justiça Restaurativa:

» o elemento social - o crime é encarado não como uma mera violação da lei mas, acima de tudo, como uma perturbação, uma disfunção das relações humanas. Esta perspectiva implica uma mudança de paradigma: é a redefinição do conceito de crime, passando este a ser encarado como um acto de uma pessoa contra outra, violador de uma relação no seio de uma comunidade, em vez de um acto contra o Estado. A tónica é colocada no comportamento anti-social e na brecha aberta nas relações comunitárias;

» o elemento participativo ou democrático – este elemento é a pedra de toque de todo o conceito: só pode falar-se em justiça restaurativa se houver um envolvimento activo das vítimas, infractores e, eventualmente, da comunidade, guindados a “actores principais” no âmbito destes procedimentos;

» o elemento reparador – os processos restaurativos são orientados para a reparação da vítima: pretende-se que o infractor repare o dano por si causado, e o facto de este e a vítima estarem envolvidos no procedimento permite ir ao encontro das reais e concretas necessidades desta.

Idealmente, os principais méritos da justiça restaurativa são, ao promover a participação activa de vítimas, infractores e comunidades, permitir às primeiras expressar os sentimentos experienciados, as consequências decorrentes do crime e as necessidades a suprir para a ultrapassagem dos efeitos deste, proporcionar aos segundos a possibilidade de compreenderem em concreto o impacto que a sua acção teve na vítima, de assumirem a responsabilidade pelo acto perpetrado, de repararem de alguma forma o mal causado e possibilitar às terceiras a recuperação da “paz social”. Enumere-se mais em pormenor as virtudes que a doutrina, coadjuvada pelas investigações já desenvolvidas nesta área, aponta à Justiça Restaurativa.

 

A justiça restaurativa e

» as vítimas;

» os infractores;

» as comunidades;

» o sistema de justiça tradicional.

 

As vítimas de crime têm a oportunidade de:

» confrontar o infractor com o impacto que o crime lhe causou, expressando os seus sentimentos, a forma como a sua vida foi afectada pelo crime, as suas emoções e necessidades;

» descobrir como é o infractor - “conhecer-lhe o rosto”;

» formular perguntas (através do mediador ou directamente) a que somente o autor do crime poderá responder: porque é que fez o que fez, porquê a mim, fiz alguma coisa que proporcionasse ou provocasse o crime, etc.;

» afastar medos e receios sobre o infractor: será que vai voltar, estarei em perigo;

» receber um pedido de desculpas e presenciar o arrependimento;

» com maior probabilidade, receber do infractor justa reparação dos danos materiais e não materiais sofridos;

» participar de forma mais activa numa proposta de solução para o caso;

» evitar a morosidade do processo penal, assim como as frequentes idas a Tribunal, com o consequente efeito revitimizador;

» “encerrar” o assunto, o que pode ajudar a recuperar a paz de espírito.

 

Os autores do crime (os infractores) têm a oportunidade de:

» assumir a responsabilidade pelo seu acto;

» explicar o porquê da prática do crime;

» tomar consciência dos efeitos do crime na vítima e compreender a verdadeira dimensão humana das consequências do seu comportamento, o que mais facilmente conduzirá ao seu verdadeiro arrependimento;

» pedir desculpa;

» proporcionar à vítima justa reparação pelos danos causados;

» actuar no futuro de acordo com a experiência e conhecimentos entretanto adquiridos;

» aumentar o nível de auto-conhecimento e de auto estima;

» promover a sua reinserção social – reabilitando-o junto da vítima e da sociedade e contribuindo para a redução da reincidência.

 

A comunidade experiencia os seguintes efeitos positivos decorrentes da justiça restaurativa:

» aproximação dos cidadãos da realização da Justiça, permitindo a sua participação na resolução dos conflitos verificados no seio da comunidade;

» redução do impacto do encarceramento na comunidade - quando os infractores, depois de cumprirem pena de prisão, regressam à sua comunidade, vêm “formados” em crime;

» promoção da pacificação social;

» realização da prevenção geral e da prevenção especial – contributo para a redução da reincidência.

 

A justiça restaurativa beneficia o sistema tradicional de justiça criminal e a administração da Justiça nas seguintes vertentes:

» contribui para a individualização das respostas e reacções jurídico-penais face às características de cada caso;

» promove a aproximação e a compreensão do sistema judicial de justiça pelos cidadãos;

» contribui para a melhoria da imagem e percepção dos cidadãos da Justiça;

» facilita a resolução de litígios de uma forma rápida, flexível e participada;

» contribui para a prevenção de litigiosidade;

» pode contribuir para a redução de processos no sistema tradicional de justiça criminal, possibilitando a concentração de esforços e meios em áreas de criminalidade mais exigentes;

» reduz os custos da “máquina” judicial;

» reduz os custos com o encarceramento.

A justiça restaurativa tem sido levada à prática através de diversos modelos que, embora eivados de princípios, valores e características atrás descritos, diferem razoavelmente entre si, radicando essas diferenças nas origens culturais que os inspiram. O modelo mais utilizado, designadamente na Europa, é a mediação vítima-infractor.